A missão de Antônio Vicente da Fontoura ao Rio de Janeiro (1844)
Nove dias pela paz, pelo Rio Grande e pelo Brasil


Introdução

Em 20 de setembro de 1844, a Guerra dos Farrapos entra em seu décimo ano sem que nem a República Rio-Grandense nem o Império do Brasil tenham perspectivas de uma vitória definitiva no campo militar. Do ponto de vista econômico, no entanto, a situação é claramente desfavorável para o lado republicano, que controla menos de um terço do território rio-grandense e nenhuma de suas três maiores cidades (Porto Alegre, Pelotas e Rio Grande). 

Convencido de que o prolongamento da guerra seria, além de inútil, contrário aos melhores nteresses rio-grandenses, o líder farroupilha Antônio Vicente da Fontoura defende a paz com o Império. Sem abandonar suas convicções republicanas e liberais, Fontoura acredita que o Rio Grande poderia negociar sua reintegração pacífica ao Brasil em condições relativamente vantajosas, usando a seu favor os temores do governo imperial brasileiro pela conjuntura no Prata (ditadura de Juan Manuel de Rosas na Argentina, guerra civil no Uruguai e rumores de criação de uma confederação platina incluindo o território rio-grandense). 

Em 5 de outubro de 1844, Antônio Vicente da Fontoura é escolhido como representante da República Rio-Grandense para as negociações de um processo de paz com o Brasil. De início, o lado republicano cogita a convocação de mediador estrangeiro, o ex-presidente uruguaio Fructuoso Rivera, mas a ideia é abandonada diante da resistência do lado brasileiro e das reticências do próprio Fontoura, que, embora amigo pessoal de Rivera, passa a ter dúvidas quanto à conveniência de seu envolvimento nas negociações. 

Em 6 de novembro, nos arredores de Bagé, Fontoura e o Padre Chagas -- que fazia as vezes de chanceler da República -- mantêm reunião com o comandante das forças imperiais, Luís Alves de Lima e Silva, então barão de Caxias, para traçar as linhas gerais da paz (nenhuma punição ou retaliação aos republicanos, assunção da dívida rio-grandense pelo Império, libertação dos escravos que serviram à República, incorporação facultativa dos oficiais republicanos no exército brasileiro). Acertam que os detalhes da conciliação serão definidos no Rio de Janeiro, ainda em 1844, em reunião entre os ministros do governo imperial e um enviado rio-grandense. 

Em 10 de novembro, Antônio Vicente da Fontoura é nomeado Enviado Plenipotenciário da República Rio-Grandense ao Brasil. Em 5 de dezembro, embarca em São José do Norte no vapor Imperador com destino ao Rio de Janeiro, aonde chega na manhã de 12 de dezembro de 1844, uma quinta-feira, acompanhado de seu secretário Zeferino Martinho da Cunha e de dois oficiais brasileiros de ligação, o Coronel Manuel Marques de Sousa e o Capitão Carlos Miguel de Lima e Silva, irmão de Caxias.

Os nove dias da estada do Enviado Plenipotenciário da República Rio-Grandense na então capital imperial assim aparecem em seu diário pessoal (Fontoura, Antônio Vicente da. Diário: de 1º de janeiro de 1844 a 22 de março de 1845. Porto Alegre e Caxias do Sul, coedição Sulina/Martins/EDUCS, 1984):

12 de dezembro de 1844, quinta-feira

“O Corcovado e logo o Pão de Açúcar, a fortaleza de Santa Cruz e depois a Laje -- a Laje onde nossos mártires da liberdade vêm dar sorriso aos déspotas -- com a aurora de hoje se foram a meus olhos desdobrando.
No Valongo, hoje cais da Imperatriz , desembarcamos pelas 7 horas da manhã, depois de trazermos uma viagem com contrários ventos, mas feliz e sempre rápida por causa do vapor.  Estou alojado no Hotel de Itália, e amanhã pelo meio dia devo falar aos ministros, segundo me avisaram o coronel Marques [de Sousa, depois Conde de Porto Alegre] e capitão Carlos [Miguel de Lima e Silva, irmão de Caxias].
Apesar de estar ainda com o meu pequeno casaquinho de campanha, tenho corrido já uma pequena parte da cidade. Está situada entre morros, mas ao que parece é suntuosa e de elegantes edifícios ornada.”

14 de dezembro de 1844, sábado

“Ontem falei ao ministro [Jerônimo Francisco] Coelho, da Guerra, ao [José Carlos Pereira de Almeida] Torres, do Império, e ao [Manoel Antônio] Galvão, da Justiça.
Ostentaram uma indiferença ridícula e um orgulho tolo! Estavam reunidos; nem mais de três artigos das proposições ou bases para a paz eles ouviram porque suas bruscas respostas olvidaram minha natural docilidade e, em tom mais agro, desdobrei verdades a ouvidos não afeitos a ouvi-las.
[Disseram] que nada podia o governo imperial ceder; que seria manchar o manto imperial e que ao barão de Caxias haviam autorizado para, por mais três meses, conceder anistia e que não sabiam como grupos dispersos de rebeldes inda pretendessem do governo tanto quanto era a indiferença com que olhavam sua clemência e que, finalmente, dariam algumas instruções mais ao barão, que em muito pouco mais assentisse, depois porém que os rebeldes depusessem as armas... Assim, e se interrompendo um ao outro, me contestaram os ministros da Guerra e do Império; o Galvão, da Justiça, como mais sagaz, mexia-se na cadeira e com mais docilidade foi resmungando as mesmas frases com suas lógicas observações; e por último assentaram que eu e meus companheiros podíamos voltar hoje, ficando-nos só o resto do dia de ontem para nos aprontarmos.
Ardia eu por contestá-los, inflamado pelo desar com que tratavam os negócios de minha pátria esses ministros que nela se julgavam amigos ou afeiçoados aos rio-grandenses, mas pedia a política que deixasse primeiro falar o coronel Marques, não só pela graduação como para orientar-me de seu modo de pensar a respeito. Correram alguns minutos e, ele nada dizendo, tomei a palavra e disse:
-- E pois que Vossas Excelências, ou o governo imperial, fazendo-se desconhecidos do verdadeiro estado do Rio Grande, da força que inda tem e pode ter o governo que aqui me mandou; da eficaz e oferecida cooperação estrangeira; querem só guerra, e guerra de extermínio; o Brasil com luto o sentirá e nós sucumbiremos , mas nosso rosto não levarão ao túmulo o cunho do envilecimento! Não, que os rio-grandenses sabem morrer! Perdem Vossas Excelências o instante da glória de pacificadores do Rio Grande e com ela talvez... etc.
Não à força da lógica, não à persuasão da eloquência, dons que em mim fenecem, mas sim ao mágico e imponente tom da razão e da justiça, pareceram tocados estes homens, sábios não, mas amestrados na corrupção da Corte. De altaneiros, se tornaram meditabundos e, passados alguns minutos, se dirigiram ao Marques, dizendo que talvez precisássemos estar na Corte mais alguns dias para nossos particulares arranjos, e que por isso podíamos nos demorar mais 3 ou 4. Marques aceitou; eu, porém, conhecendo o fim com que faziam essa proposição, agradeci de minha parte, dizendo que, julgando concluída minha missão, só precisava voltar ao Rio Grande, isto apesar de ser eu o mais empenhado pela demora, pois que dela, segundo tais homens, ia colher algum resultado. Julguei nada mais dizer então, para lhes dar tempo a meditarem e retirei-me, assegurando que voltaria a despedir-me.
O resto do dia de ontem e de hoje tenho empregado em pesquisar o caráter, não só dos três ministros referidos, como dos da Marinha e dos Estrangeiros; a potência ou impotência do imperador nas coisas públicas. Neste penoso trabalho, correm as horas, pouco adiantando, tão venais são os homens e tão poucos e mesquinhos os verdadeiros amigos dos rio-grandenses! Por entre o egoísmo, a perfídia, a má fé, o envilecimento, quanto custa a conhecer o homem honrado que, abafado e quase escondido, ainda vive aqui, como o grão do nosso belo ouro desprezado nos lados do Vacacaí! Todavia, não tenho de todo perdido o tempo.”

15 de dezembro de 1844, domingo

“Tenho descoberto alguns homens sinceros, porém poucos, pouquíssimos.
Estou avisado para uma conferência amanhã com os ministros; veremos o que pretendem; quanto ao imperador é escusado falar-lhe. Estou certo, muito certo que ele é um pobre menino, puxado sempre e sempre dirigido pelo enxame vil de vis aduladores. Ele veio hoje à Corte para dar-me beija-mão. Recusei e continuarei a recusar, enquanto não for brasileiro.
Estive com o senador Lima [e Silva, pai de Caxias]. Continuo a frequentar sua casa porque é uma bela alma! É um desses astros que não se mancham na corrupção da Corte e, a despeito dela, brilham sempre com radiante fulgor. À vista de tal pai, já me não admiro das excelentes qualidades do filho. Falo do capitão Carlos, meu companheiro de viagem, uma das belas almas que tenho conhecido.
Quanto às belezas da cidade, nada posso dizer-te porque não tenho tido tempo para visitar os estabelecimentos públicos e só me ralam a alma e me amofinam os costumes morais e desprezíveis desta grande população. Do estrangeiro aprenderam só o mau, esquecendo o bom. O luxo que ostentam os empregados públicos não pode manter-se com seu ordenado, ainda que duplicado fosse. Por isso eles serão venais.”

17 de dezembro de 1844, terça-feira

“Estou esperançado que, apesar dos últimos reveses que temos sofrido no campo [referência à derrota na batalha de Porongos, no mês anterior]; da insolência com que escreve uma folha de Porto Alegre, dando por concluídos os farrapos e que a grupos nada mais deve conceder-se, e isso por muito favor, que a anistia; de muitas cartas de malvados dessa província contendo outras e iguais mentiras, alguma coisa hei de arranjar que dê em resultado as pazes.
Ontem estive em conferência com os ministros. Achavam-se mais o Holanda [Cavalcante de Albuquerque], da Marinha, o [Ernesto Ferreira] França, dos Estrangeiros, e o [Manuel] Alves Branco, da Fazenda. Muita polidez, muita afabilidade e mais condescendência sobre nossas exigências relativamente à paz. Pareceu-me Alves Branco o mais sincero e que, apesar de ter a iniciativa no Ministério (a meu ver) o ministro Torres, era contudo aquele o de mais inteligência. Hoje vou procurá-lo e com mais franqueza expor-lhes os males da pátria e os remédios a esses males. Depois de alguns debates, eles ficaram de autorizar o barão, plenamente, para tratar da pacificação, cedendo já a todos os artigos que rezam minhas instruções, com a só exclusão de dois. E por esses dois eu de bom grado fecharia aqui a pacificação, porém minhas instruções são escritas, e que se não o fossem, eu faria para que eles autorizassem plenamente ao barão, porque ele não é, como estes, venal, e tem mais força moral que eles e que o imperador. Tal está o Brasil. 
E como minhas instruções são restritas, não podendo por isso fechar aqui as condições de paz, continuo esforçando-me para que seja concedida ao barão a maior soma de atribuições que for possível, a fim de efetuá-la aí [no Rio Grande].”

18 de dezembro de 1844, quarta-feira

“Finalmente estão prontas as instruções e o decreto autorizando o barão. Contêm as instruções (as que vi, pois, por via de um personagem estrangeiro sou informado que vão outras com mais amplidão), mais ou menos o seguinte: Reconhecimento de postos (exceto dos generais), pagamento da dívida, liberdade dos escravos etc. E para tudo isto obter quanto não foi preciso sofrer! Que bem da pátria moveu jamais a estes infelizes áulicos? Queria o Cavalcante, o ministro da Marinha, que eu ficasse aqui preso e isto só porque o bati calorosamente na conferência que tivemos ontem à noite, com todos os ministros. Com tais gentes, e se assim é como creio, em quase todo o mundo, feita está a reação do absolutismo. Ó, liberdade! Quantos algozes!
O modo de tornar isto efetivo é que são todas as grandes dificuldades... Confiar tudo à boa fé e com precedentes que altamente gritam contra! Enfim o céu nos ilumine para de semelhante caos sairmos.
Amanhã devemos embarcar no vapor Paranapitanga, de força de 60 cavalos, visto que o Gambá [referência a Marques de Sousa ou Zeferino Cunha] embirrou em não querer que voltemos no vapor em que viemos e que é de força de 120 cavalos, de muito melhores cômodos e de mais segurança para atravessar o Oceano, pois no Paranapitanga, com qualquer vento teremos de arribar, tornando mais longa a viagem que se quer fazer com rapidez.”

19 de dezembro de 1844, quinta-feira

“Depois de termos hoje pelas 4 da tarde embarcado, voltamos à cidade porque o comandante, em razão do vento contrário, só amanhã é que pretende sair. Voltaremos para bordo antes do amanhecer.”

Epílogo

O retorno de Antônio Vicente da Fontoura ao Rio Grande acontece em 27 de dezembro de 1844. Na viagem, que transcorreu sem maiores transtornos (apesar dos “maus cômodos” e de um bando de “filhos malcriados de uma mãe desmazeladíssima”), Fontoura observa na noite de 21 de dezembro em São Sebastião, São Paulo, o cometa C1844 Y1, visto naquele ano e no início do seguinte em todo o Hemisfério Sul.

Em 3 de janeiro de 1845, Fontoura encontra-se com Caxias em Piratini para avaliar os resultados da missão ao Rio de Janeiro. Em 9 de janeiro, o governo rio-grandense aprova os termos negociados com uma única dissensão, a do general Antônio de Sousa Neto. De meados de janeiro até fins de fevereiro de 1845, Fontoura empreende périplo pela Campanha para convencer as lideranças militares farroupilhas a aceitar o acordo.

Em 25 de fevereiro de 1845, em Ponche Verde (no atual município de Dom Pedrito), os oficiais republicanos aprovam por unanimidade as cláusulas de paz negociadas por Antônio Vicente da Fontoura. As proclamações de David Canabarro, comandante em chefe do Exército Rio-Grandense, e de Luís Alves de Lima e Silva, barão de Caxias, encerram formalmente a Guerra dos Farrapos em 1° de março de 1845, e reintegram o Rio Grande do Sul ao Brasil -- que se tornaria uma República 44 anos mais tarde.

Termos da Paz de Ponche Verde

1° - O indivíduo que for pelos republicanos indicado presidente da Província é aprovado pelo governo imperial.
2° - A dívida nacional é paga pelo governo imperial, devendo apresentar-se a relação dos créditos devidos.
3° - Os oficiais republicanos indicados por seu comandante-em-chefe passarão a integrar o Exército imperial no mesmo posto; os que quiserem suas demissões não serão obrigados a servir.
4° - São livres todos os escravos que serviram à República.
5° - São válidos todos os atos civis da República e todos os atos eclesiásticos do vigário apostólico, sempre que observem a lei.
6° - A segurança individual e o direito de propriedade são garantidos em toda a plenitude.
7° - Os oficiais republicanos poderão voluntariamente prestar serviço militar ao Império.
8° - Os prisioneiros republicanos serão imediatamente soltos, e os que estão fora da Província serão a ela reconduzidos.
9° - Não serão reconhecidos em suas patentes apenas os generais republicanos, que gozarão, no entanto, das imunidades dos demais oficiais.
10° -  O governo imperial cuidará de estabelecer fronteira definitiva com o Uruguai.
11° -  Ficam isentos de recrutamento de primeira linha os soldados republicanos relacionados por seus comandantes.
12° - Os oficiais e soldados que integraram o Exército imperial não sofrerão qualquer discriminação.

Assista ao vídeo "Nove dias em 1844", uma homenagem a Antônio Vicente da Fontoura, o estadista que negociou a Paz de Ponche Verde e possibilitou a reintegração do Rio Grande do Sul ao Brasil:


Livro de batismos da Igreja de Nossa Senhora do Rosário
 (Rio Pardo, Rio Grande do Sul)

"Aos doze dias do mês de julho de mil oitocentos e sete, nesta Matriz do Rio Pardo, batizei e pus os santos óleos a Antônio, filho legítimo de Eusébio Manuel Antônio, natural de Lisboa, e sua mulher Vicência Cândida da Fontoura, natural desta Freguesia. Avós paternos: Crisogno Gonçalves, natural de Trás-os-Montes, e Brigida Inácia, de Lisboa. Maternos: João Peixoto de Azevedo, natural de São Paulo, e Jerônima Velosa da Fontoura, desta Freguesia. Padrinhos: Tenente João Antônio de Moraes e Jerônima da Fontoura e Costa. Nasceu a dezesseis de junho do corrente ano, do que fiz este assento, que assinei
o Coadjutor Fidélis José de Moraes"